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Delito de Opinião

A ver o Mundial (13)

Pedro Correia, 03.07.10

 

O HOMEM MAIS SOLITÁRIO DO MUNDO

 

O futebol permite imortalizar imagens que nos acompanham vida fora. Imagens de implacáveis derrotas e vitórias redentoras que nada têm a ver com a abstracta "justiça dos resultados" tantas vezes invocada em vão pelos comentadores da modalidade. Porque o que se joga num relvado, sobretudo numa competição com a amplitude de um campeonato do mundo, transcende largamente um resultado desportivo, tornando-se uma espécie de alegoria do destino humano. São momentos de glória e desespero que perpetuam famas, boas e más. Momentos como aqueles segundos finais desse fantástico jogo que foi o Gana-Uruguai, ontem disputado em Joanesburgo.

Os ganeses desejavam ser a primeira selecção africana a atingir as meias-finais de um Mundial. Os uruguaios, arredados desde 1970 de uma meia-final, ambicionavam resgatar o brilhante passado futebolístico do seu país, campeão mundial em 1930 e 1950. Motivações diferentes, mas suficientemente mobilizadoras para empolgar os atletas. Naqueles instantes, cada um deles transportava os sonhos de milhões.

Foi aí que tudo aconteceu. A pressão atacante ganesa rompeu a exausta defesa uruguaia: com o guarda-redes Muslera batido, Luis Suárez - a estrela da equipa - impediu duas vezes consecutivas a bola de entrar na baliza. Mas à segunda actuou à margem das leis futebolísticas.

 

Como se pode falar em "injustiça" no futebol? Neste jogo disputado com os pés, Maradona tornou-se um deus do Olimpo ao marcar com a mão contra a Inglaterra em 1986. Thierry Henry conduziu fraudulentamente a França ao Mundial da África do Sul ao meter também a mão à bola. E foi igualmente com as mãos que Suárez alterou o curso da história, impedindo o Gana - o primeiro país da África negra a tornar-se independente no ciclo pós-colonial - de chegar ao pódio mundial do futebol.

Tudo mudou naquele fragmento final do jogo. O árbitro português, Olegário Benquerença, assinalou o inevitável penálti. E todo o peso do mundo caiu de imediato sobre os ombros do ganês Asamoah Gyan, encarregado de o marcar. O destino decide-se numa fracção de segundos, em poucos centímetros de terreno. Como às vezes numa guerra mundial. Como às vezes no mais banal acto do nosso quotidiano. Se marcasse, Gyan veria o seu nome inscrito para sempre na galeria dos heróis; se falhasse, tornar-se-ia símbolo de fracasso a perdurar por gerações. Que o diga o guarda-redes Moacir Barbosa Nascimento, o guarda-redes que deixou entrar o fatal golo uruguaio na final do Maracanã, em 1950, ditando o traumático adeus do Brasil ao título na sua própria casa.

 

Gyan tomou balanço, partiu para a bola - e rematou à barra.

Nada mais havia a fazer.

Seguiu-se a roleta das grandes penalidades que sempre ocorre quando o desafio termina empatado, como este terminou (1-1). Mas era óbvia a vantagem do Uruguai: o falhanço anterior arrasara psicologicamente os jogadores do Gana, enquanto os sul-americanos se sentiam ungidos pela graça de Deus.

Levaram a melhor, claro.

No futebol, a fraude pode compensar: ganhou quem merecia perder. Mas o estranho sortilégio deste jogo passa também por isto.

O rosto de Gyan, devassado pelos grandes planos televisivos, era uma máscara de dor: uma etapa crucial da vida dele fechou-se para sempre quando aquela bola bateu na barra. Naquele momento, não havia ser humano tão fotografado no planeta. Naquele momento, não havia ser humano tão solitário no mundo.

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