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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (7)

Pedro Correia, 19.07.10

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LILITH:

NADA É MAIS DIFÍCIL DO QUE SER FELIZ

 

E o mar vindo da primitiva solidão
entre futuras árvores de súbito evidente
está mais perto de ti que a minha mão.
Ruy Belo, Boca Bilingue

 

A voz da loucura pode tornar-se a voz da razão. Quando Vincent Bruce (Warren Beatty) chega a uma clínica para esquizofrénicos da Nova Inglaterra, como ajudante de enfermeiro, uma das internadas grita-lhe: «Vá-se embora daqui!» É um aviso cheio de carga premonitória.

Aviso ignorado: Vincent, natural daquela vila cinzenta e chuvosa, desde pequeno sonhara perceber o que se passava para lá dos muros daquela instituição que alberga filhos desafortunados de gente rica. «Nunca fiz nada que valesse a pena», diz este antigo soldado, recém-chegado da tropa, onde foi ferido. Nunca saberemos ao certo a natureza deste ferimento, mas pressentimos que não lhe tocou só o corpo: também lhe atingiu a alma.

Vincent conheceu a insanidade da guerra, que certa noite revisita através de imagens dramáticas na televisão. Faltava-lhe conhecer a insanidade do amor - e é isso que descobre ao encontrar Lilith Arthur (Jean Seberg), trágica protagonista deste filme sublime: Lilith e o Seu Destino - o último de Robert Rossen (1908-1966), falecido dois anos mais tarde, sem saber que a geração seguinte de críticos, desmentindo o juízo negativo inicial de publicações como a Variety, o elevaria ao estatuto de obra-prima.

 

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Tudo começa com Beatty a avançar por um estreito caminho ladeado de choupos - como se apenas naquela alameda se jogasse o seu destino. Vêmo-lo de costas, à distância, na fabulosa fotografia a preto e branco de Eugene Schufftan. É também de costas que nos surge Jean Seberg: só à sexta vez lhe desvendamos enfim o rosto. Mas vale a pena tal espera: é um daqueles rostos que jamais apagamos da memória.

Vincent Brice sentiu o mesmo: Lilith surge-lhe como uma singular reminiscência da mãe, morta era ele criança. Pouco mais sabemos dela senão que sofreu também de distúrbios mentais - o que só reforça o paralelo com Seberg, a mulher que destrói aqueles que ama. Tão luminosa por fora, tão crepuscular por dentro.

O Dr. Lavrier, o psiquiatra, compara-a a «um cristal que foi quebrado pelo choque de uma revelação insuportável». E acrescenta: pessoas como ela são por vezes «destruídas pela sua própria excelência». Quanto melhor, pior.

A esquizofrenia de Lilith estará relacionada com o suicídio do irmão? As suspeitas adensam-se aos olhos de Vincent, quando a vê insinuar-se junto de rapazinhos de rua. Mas o rasto de morte que a persegue é mais um ponto de ligação entre ambos: ela perdeu o irmão, ele perdeu a mãe. «Costumas ouvir pessoas de quem gostas a chorar?», pergunta Jean. «Às vezes ouço a minha mãe», responde Warren.

Quem sabe seja o que for sobre os abismos da mente?


Lilith - baseado no romance homónimo de J. R. Salamanca - é um filme lento, sincopado, feito de prolongados silêncios, intercalados pela memorável partitura de Kenyon Hopkins. É construído como as teias que surgem no fabuloso genérico de Elinor Bunin. E com planos fixos que nunca esqueceremos: os raios de sol reflectidos nas águas; Beatty a escutar, atento, o diálogo entre Lilith e Stephen Evshevsky (Peter Fonda) à beira das cataratas; as folhas de uma árvore rasgando o nevoeiro; a desoladora cozinha da desolada casa de Laura, a ex-namorada de Vincent, incapaz de perceber que para ela o tempo do «esplendor na relva» já passou.

Mas nada iguala os grandes planos destes dois protagonistas de um amor impossível. Nunca a beleza de Seberg foi tão evidente. E nunca a fragilidade desta beleza foi tão evidente também.

«Ela faz-nos esquecer que é uma doente», confessa Vincent a Bea Brice (Kim Hunter), num dos raros momentos em que se torna capaz de uma confidência. Falta pouco para ele próprio se ver impelido a pedir auxílio. «Help me»suplica no magnífico plano final. Já Stephen se matara, também ele vítima do funesto amor de Lilith. E já ela mergulhara naquele estado catatónico, feito de sono e sonho, que transforma a vida em mero prelúdio de morte. «Ver a loucura nos homens aflige menos do que nas mulheres», dissera Bea a Vincent no primeiro dia. Nada mais certo.
No fundo, «a loucura talvez seja apenas infelicidade», admitira Stephen. E como se resvala para lá? Pela mais inesperada das vias: «A felicidade torna-nos descuidados», adverte também este doente, com mais sabedoria do que todos os médicos.

Completa-se o ciclo: a voz da loucura pode tornar-se a voz da razão.


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Lilith (1964). Realizador: Robert Rossen. Principais intérpretes: Jean Seberg, Warren Beatty, Peter Fonda, Kim Hunter.

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