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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (6)

Pedro Correia, 12.07.10

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VIAGEM A ITÁLIA:

O FOGO E AS CINZAS

 

Um casal britânico ruma a Itália para vender uma propriedade de um falecido tio dela. Da propriedade avista-se a baía de Nápoles e a massa imponente do Vesúvio. Dez anos antes registara-se a última erupção digna de nota do vulcão, entretanto adormecido – metáfora perfeita para caracterizar a relação conjugal de Katherine e Alexander Joyce.

«Nos teus olhos só vejo cinismo e ironia», atira-lhe ela, enquanto ele deplora o «ridículo romantismo» dela. Logo no primeiro diálogo que travam, algures numa estrada a cem quilómetros de Nápoles, é fácil detectar os sinais de desgaste do casamento, que dura há oito anos. «É a primeira vez que estamos sozinhos desde que casámos», lembra Katherine (Ingrid Bergman) a Alex (George Sanders), que reconhece serem «estranhos um para o outro». Tão estranhos que dormem em quartos separados e não parecem partilhar gostos de espécie alguma.

Estranho, para eles, é também aquele país meridional, inundado de luz solar, onde os pares se enlaçam, as brigas por ciúme são frequentes e há sempre uma canção romântica a irromper em fundo. É o país que encantou Byron, Ezra Pound e um jovem poeta amigo de Katherine, Charles Sutton, morto anos antes, vítima de tuberculose, depois de lhe dedicar uns versos que jamais se lhe apagaram da memória.

 

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A ficção imita a vida real – ou será o contrário? O casamento entre Ingrid Bergman e Roberto Rossellini estava também à beira do fim quando o cineasta de Roma, Cidade Aberta rodou esta belíssima Viagem a Itália, uma das suas cinco longas-metragens que a actriz sueca protagonizou com ele.
Distantes pareciam já os tempos em que a bela Ingrid, deusa de Hollywood, trocara a Califórnia por Roma, rendida à explosão do cinema neo-realista que tinha Rossellini como mentor. Os americanos não lhe perdoaram a traição, os italianos sempre a trataram como estrangeira. E no entanto Ingrid era a força motriz daquela união com Roberto – uma «criança grande», como ela lhe chamou nas suas memórias.
Também no filme é Katherine quem guia: assim a vemos logo nos momentos iniciais. Ela de olhos fixos na estrada, ele de olhos fechados. À mulher, à vida, àquele país onde o «aborrecimento e o barulho andam a par».
 
 
«É necessário que o cinema ensine as pessoas a conhecerem-se», costumava dizer Rossellini, cultor de uma arte sem artifícios.
Não conheço outro filme que exiba com tanta sensibilidade as surdas tensões capazes de abalar qualquer casamento, proporcionando o mais delicado dos retratos de uma mulher apostada em ressuscitar o amor. A mesma que, vendo circular nas ruas de Nápoles várias grávidas e jovens mães empurrando carrinhos de bebés, fala deste modo, com o coração magoado ao pé da boca: «O erro do nosso casamento foi não termos filhos.»
Amarga ironia: foi ela afinal quem não quis tê-los.
 

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Viagem a Itália
– uma obra que «reconcilia o quotidiano com o eterno», no dizer de Claude Beylie – está cheia de cenas inesquecíveis. A do breve encontro entre Alex e a triste prostituta que planeara suicidar-se na noite anterior. A magnífica sequência do regresso dele a casa, quando Katherine finge estar adormecida e toda a ambiguidade de sentimentos conjugais se revela ao espectador naquele admirável jogo de luz e sombras. A visita às ruínas de Pompeia, onde ambos caminham sempre separados, sem o mínimo contacto físico, ao encontro dos ossos calcinados de um par surpreendido num abraço eterno, dois mil anos antes, pela lava do Vesúvio. «Encontraram a morte juntos», surpreende-se ela.
O amor também pode ser imortalizado assim.
 
É em Pompeia que Ingrid e George parecem tornar-se finalmente conscientes de que «a vida é breve» (diz ela) e «por isso temos de aproveitá-la» (diz ele).
 
Mas a ressurreição do fogo que julgavam extinto ocorre no mais imprevisto dos cenários: no meio de uma procissão em honra da madonna que atrai milhares de napolitanos.
«Como podem acreditar nestas coisas? Parecem crianças!», admira-se o inglês que esconde sempre as emoções.
«As crianças são felizes», observa a mulher, que acredita em milagres.
 
E é num milagre que culmina este filme que nos fala sempre da terra enquanto nos mostra o céu. Separados pela torrente da multidão, Alex e Katherine acabam por cair nos braços um do outro. É afinal possível que das cinzas renasça o fogo que arde sem se ver?
«Creio porque é absurdo», dizia Graham Greene. Para quem crê, todos os vesúvios se movem. A qualquer instante, em qualquer lugar.
 
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Viagem a Itália (Viaggio in Italia, 1953). Realizador: Roberto Rossellini. Principais intérpretes: Ingrid Bergman, George Sanders, Leslie Daniels, Natalia Ray, Anne Proclemer, Maria Mauban.

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